Projecto
As premissas que estão na base de “A incompletude para além do fim” requerem, assim, uma visão ampla sobre as condições, continuidades, rupturas, reparações e criações que estão presentemente a surgir na cidade do Porto, de uma forma geral, e em Campanhã, num âmbito mais específico. Trata-se de um conjunto de circunstâncias que, sendo inerente a um território, parece ter réplicas em outros contextos, não sendo verdadeiramente possível definir a origem. Isto é, apesar de este trabalho se focar em exclusivo numa análise territorialmente mais detalhada, ela parece não se esgotar nesta geografia, permitindo extrapolar questões estruturais e sistémicas que se ligam a economias e movimentos globais que se manifestam localmente. Fenómenos migratórios, de gentrificação, indústrias culturais, indústrias criativas, sustentabilidade, habitação, espaço público, todos estão a gerar efeitos que podem fortalecer ou gerar disrupções a nível identitário.
É sabido que a estrutura do espaço, a sua organização empírica e a organização social dos grupos definem em larga medida o desenvolvimento da identidade coletiva de uma determinada população. O discurso, as estruturas, as ideologias e as imagens dominantes configuraram Campanhã como um território cuja tendência de exclusão só agora se começa a reverter. Este mecanismo, profundamente associado a fatores como a organização da cultura e dos espaços, onde elementos como a mobilidade e a distância são cruciais, gere as escalas pelas quais os indivíduos são colocados numa envolvência social que os define. Isto é, como “sendo” ou “estando” no/do Porto. As histórias e narrativas que aqui se apresentam pretendem criar discussões sobre o potencial e os limites da cidade e promover modelos de regeneração urbana inclusiva. Pretende-se, assim, que o projecto sirva como um catalisador para o resgate do potencial crítico e transformador do espaço urbano quotidiano, promovendo a articulação das experiências pessoais com políticas públicas, iniciativas privadas e outros projetos localmente implementados.
Tinha ido acompanhar as actividades desenvolvidas no âmbito do projecto Sinergias, na Casa das Glicínias. Foi das primeiras vezes que me desloquei a Contumil, saindo de um eixo geográfico de trabalho que estava a passar principalmente pela zona centro e sul de Campanhã. Ensaiavam uma apresentação a realizar no início do Verão. Foi imediata, a energia sentida naquele momento. Um compromisso por parte de toda a equipa e participantes que não deixava dúvidas quanto à importância da apresentação final.
E apesar de a fotografia estar progressivamente dependente de telemóveis, a curiosidade juvenil é, felizmente, uma garantia de reinvenção, reutilização, experimentação de coisas que, não sendo necessariamente novas, são novidade. Para alguns destes alunos, o uso de uma máquina fotográfica constituiu um desses momentos.
“Sr. Carlos, sr. Carlos, podemos fazer umas fotografias com a sua máquina?”. “Claro!”.
A partir desse momento soube que tinha que lhes propor um workshop no âmbito de “A incompletude para além do fim” com esta equipa. O resultado está na fanzine no2, que convido a ver.
“Sr. Carlos, sr. Carlos, podemos fazer umas fotografias com a sua máquina?”. “Claro!”.
A partir desse momento soube que tinha que lhes propor um workshop no âmbito de “A incompletude para além do fim” com esta equipa. O resultado está na fanzine no2, que convido a ver.
É virtualmente impossível falar de Campanhã, de música, de activismo, de possibilidades e desafios superados sem falar do Ricardinho. Desde há muito tempo, a sua energia, compromisso e disponibilidade têm sido um dos motores de desenvolvimento social e cultural desta zona do Porto. A ele devo muitas redes e contactos. Mas quando se fala dele sobressai a música. Pela paixão, entusiasmo e qualidade. Regressei ao Bairro do Cerco depois de algum tempo para acompanhar a gravação do videoclip “Mensagem", no âmbito da oficina Criativa, integrada na ação "capacitARTE" do Contrato Local de Desenvolvimento Social (CLDS) REDES 4g. O videoclip poderá ser visto aqui.
Ainda no mesmo espaço no Bairro do Cerco, acompanhei a oficina de Mixagem, onde jovens tiveram capacitação pela DJ Nalu Rossi. Não me seria possível pensar Campanhã sem banda sonora, sem um conjunto de refrões, e beats, e letras que passam pelo Cerco.
Várias vezes me afirmaram que, durante alguns anos, o Parque Oriental não era utilizado por habitantes dos bairros do Cerco, Lagarteiro, Pego Negro, e Falcão. Nas entrevistas iniciais pude constatar que várias dessas pessoas não se sentiam confortáveis para usufruir do parque, não só pela falta de hábito de ter um espaço público dedicado a si, mas também pela falta de condições de segurança. Dois anos volvidos, encontrei por lá residentes dessas áreas de Campanhã e de tantas outras, aproveitando o Parque Oriental, desenvolvendo múltiplas actividades e propósitos. Por outras palavras, foi a criação de um espaço público com infra-estruturas adequadas que gerou a sua utilização por parte da população. Caminhar é certamente um acto político.
Os últimos dois anos trouxeram transformações profundas a este território. A construção do Terminal Intermodal de Campanhã levou a inúmeras intervenções na zona circundante e, em particular, ao local onde anteriormente se encontrava a Associação Movimento Terra Solta, a Quinta do Mitra, atualmente requalificada. Devido a este novo contexto, a Associação presidida por Vitor Parati teve que procurar um novo local para se instalar, encontrando um espaço disponível no Centro Juvenil de Campanhã, agora designado de Quinta Pedagógica de Campanhã.
Dois anos de trabalho transformaram um local abandonado numa estrutura onde semanalmente se plantam, e recolhem, rebentos de árvores, sementes, frutos e outros vegetais, se criou uma biblioteca pública, se promovem actividades e acções para a preservação ambiental, se fomentam momentos que inspiram a justiça social, a solidariedade e o cooperativismo. Foi também lá que, além do Vítor e da Guida conheci, ao longo de um dos demorados almoços ao sábado, por baixo das árvores que nos ampararam do sol e do calor, com vista para a ponte do Freixo o Valerio e a Ophélie. Ele italiano e ela belga. Fazem o seu Erasmus na cidade do Porto e parte da sua experiência é o voluntariado e a participação em actividades dedicadas à preservação ambiental. As suculentas que a Guida me ofereceu estão na minha varanda.
A. Por toda Campanhã se pode encontrar esta espécie invasora, Ipomeia Indica. Passando pelo Parque Oriental, subindo para o Bairro do Cerco, pode ver-se uma vasta extensão de terreno invadida por esta planta. Foi ali que A., vendo-me de máquina fotográfica, me perguntou se lhe podia tirar um retrato, enquanto empunhava numa mão uma flor dessa espécie, de tons azuis e, do outro, uma forquilha de madeira, para apanhar dióspiros. “Claro que sim”.
Estava de passagem porque tinha ido a um canto do terreno fumar um cigarrinho. Ex-segurança de discotecas, actualmente jardineiro, foi-me contando a sua história de vida, culminando nos exercícios que fazia no ginásio antes de ser consumidor de drogas pesadas. Felizmente já as abandonou, desde que saiu do hospital, há cerca de dez anos, após uma extensa cirurgia maxilo-facil que lhe refez o rosto e as cordas vocais, devolvendo-lhe parcialmente a voz depois de um tumor cerebral.
Tinha umas roupas no seu saco, que encontrou no caminho e ofereceu a um outro conhecido que passou por nós. Esfregou a flor nas roupas manchadas, “tira-lhes a sujidade”. Segundo A., esta planta tem também propriedades anti-inflamatórias, usando-a para curar feridas, nomeadamente uma que tinha feito na mão esquerda. Aproveitou-a ao máximo. Não quis arrancar uma segunda flor porque não gosta de tirar as coisas vivas do solo onde pertencem.
Tinha passado inúmeras vezes pela Associação do Porto de Paralisia Cerebral. Localizada na Alameda de Cartes, foi por via do projecto CLDS4GREDES que pude chegar à associação e aí poder desenvolver o primeiro workshop de fotografia. Parte das actividades do CLDS REDES 4G, em parceria com o CAARPD da APPC, passava pela co-construção de um mural com os participantes do Artivismo, uma das oficinas capacitARTE que pretendeu estabelecer uma ligação entre Direitos Humanos e Arte. Para tal, foi fundamental a parceria com o Coletivo Epifania, um movimento de artistas imigrantes de grande expressão e diversidade artística na cidade do Porto.
Conseguido no final do módulo muralismo, e tendo participantes com e sem deficiência, pretendeu dar-se voz às suas necessidades . Documentei a sua pintura. No entanto, a continuidade na Associação permitiu-me, também, saber de algumas das dificuldades actuais, nomeadamente ter conhecimento de múltiplos assaltos que ali têm ocorrido, ao qual o contexto de toxicodependência cada vez mais notório não é certamente alheio.
Por pura coincidência ou não, durante as minhas deambulações por Campanhã encontrei vários pugilistas.
Enquanto descia a Rua do Freixo cruzei-me com o Cláudio e o Vítor que treinam na União Desportiva da Sé. Estavam a passear pela zona para fazer um intervalo do treino.
Mais tarde conheci o Ezequias. Baiano, passou por São Paulo e é morador em Campanhã há cerca de quatro anos e meio. Acompanhou as obras do Terminal Intermodal (TIC) desde o início. Treinador de pugilismo, passeava os seus animais de estimação na praça em frente ao TIC.
Mais tarde conheci o Ezequias. Baiano, passou por São Paulo e é morador em Campanhã há cerca de quatro anos e meio. Acompanhou as obras do Terminal Intermodal (TIC) desde o início. Treinador de pugilismo, passeava os seus animais de estimação na praça em frente ao TIC.
Mais tarde, casualmente, vi-o no estúdio onde treinava o seu atleta, o Bertinho, que pratica pugilismo e kickboxing. Fui convidado a entrar e a fotografar. Preparavam a luta que o Bertinho iria ter no dia 7 de Outubro. Em nenhum outro momento tinha conhecido tantas pessoas praticantes de pugilismo ou desportos de luta o que, de alguma forma, é representativo de uma região. Nesse mesmo dia o Bertinho sagrou-se campeão nacional de kickboxing categoria 60kg.
Sr. A. Dir-se-ia que poderia ter uma tarefa algo semelhante a um caseiro. Veio de Baião para o Porto há mais de cinquenta anos, vindo viver directamente para Campanhã. De resto, ainda se recorda de, perto de onde é atualmente a rotunda do Freixo, estarem lá depositadas as vigas de aço que iriam servir para a construção da futura Ponte da Arrábida. Detive-me perto do Horto do Freixo, atual Quinta da Revolta.
O caminho, empedrado e particularmente estreito, está frequentemente sujo e é ele que o vai limpar, apesar de ser responsabilidade da Câmara. Não gosta de ver o lixo e já por múltiplas vezes interrompeu casais porque deitavam os preservativos pela janela do carro. Por volta das 20h vai a casa, jantar. “Hoje já se está a fazer tarde". Identifica facilmente quem estaciona ali para a brincadeira, quem vai fumar "uma daquelas coisas" e desconfia dos restantes.